A formação de um saber privilegiado

Tablets da antiga Babilônia fornecem pistas sobre como era a matemática daquela região. As figuras ao lado mostram a reprodução de um tablet com o cálculo da raíz cúbica. Os pesquisadores Neugebauer e Sachs estimam que seja do ano 6295 a.C. Sua transcrição e tradução para o inglês são também forneceidas pelos autores. reprodução da placa com escrita matemática
Além do estilo procedimental ("faça isso, depois isso") fica também aparente uma aproximação com o leitor. Não é uma expressão impessoal, como a expressão matemática dos nossos dias. O trecho apresenta o cálculo da raíz cúbica de um dado número b = 3,22,30 (base sessenta). O autor explica que, para isso, é usado um número auxiliar a = 7,30,0, cuja raíz cúbica igual a 30 é conhecida. Daí, segue-se o seguinte cálculo: transcrição da placa com escrita matemática
fórmula matemática
O cálculo pressupõe três condições: (1) que a seja o cubo de um número racional; (2) que a seja um número regular, ou seja, pode ser decomposto em potências de 2,3 e 5, como 60 22 * 3 * 5; (3) que a raíz cúbica de b/a possa ser calculada.
Fonte: Capítulo III de Mathematical Cuneiform Texts, que analisa diversos exemplos da elaborada matemática babilônica.
tradução da placa com escrita matemática
Um negócio pra Deuses ... ou Gênios
(Paulo Freire 1996)
Paulo Freire
        Nos dias de hoje, após muitos séculos de um percurso matemático que se envergonha da aproximação com a vida e reivindica para si o prestígio de um saber que se estabelece somente a nível do raciocínio apurado, presenciamos o testemunho inconformado daqueles que buscam para a “Rainha das Ciências” uma origem fidalga. Estes, analisando o percurso das matemáticas antigas, ainda esperam encontrar sinais de uma racionalidade não desvelada:

        Os ensinamentos eram transmitidos na forma: ‘faça isso, depois isso, em seguida isso e esse é o resultado’. É difícil acreditar que certas ‘receitas’ apresentadas pelos matemáticos babilônicos tenham sido descobertas apenas por tentativas, sendo provável que algum raciocínio lógico, não explicitado, tenha sido usado (Garbi 2007 p.12).

        Outros textos famosos da atualidade, adotam uma concepção evolutiva cujo parâmetro é a matemática praticada nos dias de hoje, ficando subjugado o atendimento às demandas de um povo em seu tempo e ambiente. Nessa perspectiva, consideram como “deficiências da matemática” daquele tempo e lugar a falta de um raciocínio lógico explícito e desvinculado das práticas. Uma matemática evoluída seria uma expressão abstrata, isto é, a expressão descolada das coisas do mundo que lhe serviram de inspiração:

        Os papiros e tabletas encontrados contém apenas casos específicos e problemas, sem formulações gerais, e pode-se perguntar se essas civilizações antigas realmente percebiam os princípios unificadores que estão no centro da matemática (Boyer 1999 p.28).

        São muitas as evidências de que o conhecimento matemático não tem suas origens no mais nobre intelecto por meio do raciocínio lógico, ao contrário, essas histórias antigas mostram que estava, desde sempre, na feira, no comércio, na agricultura, na fé, para resolver questões imediatas da vida e da busca humana por explicações diante de sua finitude. Esses ambientes turbulentos permitiram uma confluência de fatores que estimularam o pensamento de modo a criar as mais diversas expressões e soluções. Sob este ponto de vista, a matemática de ‘receitas’ é suficientemente evoluída, a ponto de resolver as demandas do seu tempo e local.

        Por volta do século VI a.C, o povo grego passou a tomar conhecimento da matemática egípcia e babilônica. A vida, em especial, a atividade do comércio, foi o que fomentou e possibilitou esse intercâmbio em pelo menos dois episódios: a cessão de Náucratis aos gregos e as viagens do comerciante Tales. Vejamos:

        Conta Heródoto, que o faraó egípcio Amásis, que governou entre 570 e 526 a.C, permitiu, a instalação de um ponto de comércio na cidade de Náucratis, uma decisão que não somente atendeu à simpatia de Amásis aos Gregos, mas também à iniciativa de concentrar os gregos em Náucratis, amansando um certo incômodo com relação à presença deles no Egito:

        Amásis deu inúmeras provas de sua amizade aos Gregos, prestando favores a muitos deles. A muitos dos Gregos que iam freqüentemente ao Egito e demonstravam gostar do país, deu permissão para se estabelecerem em Náucratis, e aos que não queriam ali fixar residência e que não viajavam senão por interesse comercial concedeu locais para a ereção de templos e altares aos deuses de sua predileção. (Heródoto livro II parágrafo CLXXVIII).

cerâmica de Naukratis
No final do século XIX, as pesquisas arqueológicas realizadas na área onde havia a cidade de Náucratis revelaram a intensidade do intercâmbio entre a cultura Grega e Egípcia. Esta imagem mostra um fragmento de prato confeccionado em Náucratis, com forma e estilo da Grécia Oriental. Santuário do Dioskouroi, segundo quartel do século 6 aC. Museu de Belas Artes, Boston, 86.533. Fonte: (Villing et al 2014 p 16 fig 24).

        Em alguns trechos, Heródoto se refere às célebres cortesãs como Ródope, contemporânea de Amásis: “As cortesãs de Náucratis são geralmente dotadas de grande beleza” (Heródoto livro II parágrafo CXXXV). A menção às cortesãs e seus prestigiados serviços nos leva a pensar que aquele teria sido um centro efervescente. Nesse ambiente de grande circulação, os papiros egípcios devem ter chegado aos Gregos possivelmente em troca das produções gregas como tecido, vinho, cerâmica e azeite. Contrabando, comércio, cortesãs, a vida pulsante, eis um lugar propício para o desenvolvimento da matemática.

        Outro motivo fomentador do intercâmbio entre gregos e egípcios foi a viagem de Tales de Mileto (623 a.C a 556 a.C) ao Egito. Não parece ter sido uma viagem para fins de comércio, ao contrário, Tales pretendia “gozar da palestra dos sacerdotes e astrônomos do país” (Souza 1956 p.368). Entretanto sabe-se que Tales foi um próspero e inteligente comerciante grego, e isto o colocava em uma posição privilegiada, com acesso à pessoas importantes na sociedade egípcia, ao ponto de visitar a Pirâmide de Quéops na companhia do próprio Amásis.

        Não há hoje documento original autenticando os métodos de Tales, mas há quem diga que ele teria sido responsável pelas primeiras apresentações de provas dedutivas na matemática, e por isso alguns o consideram o pai da matemática dedutiva. As informações que hoje dispomos foram em grande parte disseminadas a partir do Livro History of Geometry de Eudemus de Rhodes (370 aC a 300 aC), anterior a Euclides. No entanto, a obra de Eudemos se perdeu e o que se sabe hoje é devido a citações de outros historiadores da Grécia antiga, como Proclo (412 a 485). Por exemplo, no Comentário sobre o Livro I de Euclides, Proclo dá diversas pistas sobre Tales, bem como sobre os pitagóricos, sugerindo uma concepção dedutiva da matemática:
        Tales, que viajou para o Egito, foi o primeiro a introduzir essa ciência na Grécia. (...) Pitágoras transformou a Filosofia Matemática em um esquema de educação liberal, examinando seus princípios do alto para baixo e investigando seus teoremas de uma maneira imaterial e intelectual. (Proclo p.52-53).
        Eudemo, o Peripático, atribui aos pitagóricos a descoberta deste teorema de que os ângulos internos de cada triângulo são iguais a dois ângulos retos. Ele diz que eles provaram o teorema em questão (...) ”. (Proclo p.298).

        Souza e Boyer discordaram, situando na concepção dos conceitos (e não na construção de demonstrações) a grande contribuição de Tales:

        Não se trataria, propriamente, de uma demonstração, mas da apresentação de um desenho geométrico, explicando uma das primeiras observações científicas. No caso, o que era novo, de uma novidade extraordinária, estava na observação teórica, e não no desenho, a bem dizer (Souza 1956 p.373).
        (...) Tales foi frequentemente saudado como o primeiro matemático verdadeiro – originador da organização dedutiva da geometria. Esse fato, ou lenda, foi ornamentado, acrescentando-se a esse teorema [que um ângulo inscrito em um semi-círculo é um ângulo reto] outros quatro que se dizia provados por Tales. (...) Não há documento antigo que possa ser apontado como prova desse feito, no entanto, a tradição é persistente. (Boyer 1999 p.32).

        Também Pitágoras (570 a.C a 495 a.C) costuma receber as honras de ter iniciado o processo dedutivo na matemática, o que levanta suspeitas em função da compreensão pitagórica de números como coisas concretas, algo espacialmente extenso. Por exemplo, para os pitagóricos “O número ímpar em geral, e o número 3 em particular, era definido (...) como ‘aquele que tem um começo, um meio e um fim’. O número par, por outro lado (...), não tem ‘meio’” (Kirk & Raven 1966 p.250).

representação do número ímpar         representação do número par
Números ímpares                                 Números pares

        Os pitagóricos identificavam o número ímpar com o finito e o par com o infinito. Kirk & Raven apontam uma possível explicação: O número ímpar, por ter uma unidade "meio", não pode ser dividido em duas partes iguais. Já o par pode ser separado em duas metades até o infinito. Figura adaptada de Kirk & Raven pg 250
.

        Como os pitagóricos tinham uma tradição oral, não restou um documento que nos permita dizer ao certo que tipo de apresentação da matemática eles praticavam. Mas, a aproximação com o concreto parece sugerir que a matemática pitagórica se colocava distante de se apresentar como um encadeamento formal de argumentos.

        Um negócio pra Deuses ... ou Gênios. Como disse Paulo Freire, a matemática alcançou os nossos dias com o status de raciocínio extremamente abstrato e sofisticado. Mas a história da matemática mostra que, da mesma forma como acontece em qualquer outro campo do conhecimento, a apresentação legitimada esteve sempre acompanhada por uma outra, que se estabeleceu no modo de pensar da sociedade, como um saber compartilhado nas ruas, no comércio, na vida. É nessa forma vivida, experimentada, que inventamos os conceitos, as ideias matemáticas que possivemente serão expressas na forma abstrata.

O trecho do filme "O enigma de Kaspar Hauser", de Werner Herzog, 1974, mostra um embate entre a matemática formal (abstrata) e uma outra matemática que acompanha o viver. A matemática formal recusa qualquer argumento que se desenvolva em termos das coisas da vida, só admite explicações em seus próprios termos. Nesta cena, o professor recusa a solução de Kaspar Hauser por ser construída sobre raciocínios do seu próprio viver. A solução de Kaspar Hauser situa a rã como contraponto entre a vida e o argumento formal. O professor não aceita. Para ele, a argumentação formal é a medida da da "capacidade de pensar", portanto, Kaspar Hauser não pensa. Não é uma cena muito diferente da realidade da escola brasileira onde "inteligente" é o menino que aprende a matemática escolar. Paulo Freire lamenta: ... e com isso, quantas inteligências críticas, quantas curiosidades, quantos indagadores, quanta capacidade abstrativa para poder ser concreta, perdemos.

Governanta: Kaspar, o professor veio de longe, pede para lhe fazer algumas perguntas. Ele quer analisar sua capacidade de pensar. Ele quer ver o que aprendeu nestes dois anos e se você é capaz de pensar. Vai responder às suas perguntas?
Kaspar: Sim.
Professor: Muito bem. Imagine que esta é uma aldeia onde moram pessoas que dizem a verdade. Esta é uma outra aldeia onde moram pessoas que mentem. Desta aldeia sai uma estrada que leva a você. Desta outra aldeia também sai uma estrada que leva a você. Você está na encruzilhada. Chega um viajante e você quer saber se ele veio da aldeia onde dizem a verdade ou se ele veio da aldeia onde mentem. Para resolver este problema com lógica, só há uma pergunta a fazer ao viajante. Por favor, diga-me qual é a pergunta.
Governanta: Isso é muito difícil pra ele. Ele não saberá responder. (...)
Professor: Você tem a possibilidade, Kaspar, de resolver este problema com uma única pergunta.
Governanta: Eu não sei.
Professor: Já que não sabe, Kaspar, vou lhe dizer: "Você diria 'não' se eu perguntasse se você veio da aldeia da mentira?". Com a dupla negação podemos forçá-lo a dizer a verdade, por intermédio da dupla negação, ele revelará sua identidade. Isso é lógica. Argumentação para o total absoluto.
Kaspar: Eu conheço outra pergunta.
Governanta: sim?!
Professor: Não há outra pergunta. Segundo as leis da lógica, não há outra pergunta.
Kaspar: Sim. Eu conheço outra pergunta.
Professor: Então nos diga.
Kaspar: Eu perguntaria ao viajante se ele era uma rã. Se ele viesse da aldeia da verdade, diria, “Não. Não sou uma rã”, pois ele não mente. Se fosse da aldeia da mentira, ele diria: “Eu sou uma rã”, pois ele mentiria. Então eu saberia que ele vinha da aldeia da mentira.
Professor: Não. Não é esta pergunta. Não posso admitir isso. Não tem nada a ver com lógica. Lógica é dedução, não é descrição. Isto é apenas uma descrição. Não tem nada de lógica.
Governanta: Ele não entende disso.
Professor: O raciocínio tem que ser construído. A lógica é essencial. Como professor de lógica e matemática não compreendo, eu deduzo. Não posso aceitar a sua pergunta.

Referências

BOYER, C. B. História da Matemática. São Paulo, Editora Edgadr Blücher LTDA,1999.
FREIRE, P. Entrevista a Ubiratan D'Ambrosio e Maria do Carmo Mendonça em 1996. Disponível aqui.
GARBI, G. G., A rainha das Ciências, um passeio histórico pelo maravilhoso mundo da matemática, São Paulo: Editora Livraria da Física, 2007.
HERÓDOTO (484 A.C. - 425 A.C.), Histórias (Livros 1 a 9) Broca, J. B. (trad.), eBooks Brasil, 2006. Disponível aqui.
KIRK, G. S., Raven, J. E. Os Filósofos Pré-Socráticos. Fonseca, C. A. L., Barbosa, R. B. e Pegado, M. A. (tradutores) Lisboa: Fundação Calouste Gulbekinan. 1966.
NEUGEBAUER, O., SACHS, A. Mathematical Cuneiform Texts. American Oriental Society, New Haven, Conn., 1945.
PROCLUS, Lycaeus (412 A.C. 485 A.C.). A Commentary on the First Book of Euclid's Elements. Trans. Morrow, G. R. Princeton Universty Press, Oxford, 1992.
SOUZA, J. F., Origens da Civilização Eolo-Jônica. Comentários sobre Homero e Tales de Mileto, Revista de História da USP, n. 26, 1956. Disponível aqui.
VILLING, Alexandra; BERGERON, Marianne; JONHSTON, Alan; MASSON, Aurélia; ROSS, Thomas. The material culture of Naukratis - an overview. In: Naukratis: Greeks in Egypt, The British Museum. 2014. Disponível aqui.

Programa de Pós-Graduação em
História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia
UFRJ
faixa logo HCTE logo IC-UFF Creative Commons License This work is licensed under a
Creative Commons Attribution-NonCommercial-ShareAlike 4.0 International License